sábado, 7 de março de 2015

À espera de quê

Já não escrevo como outrora, ainda que na verdade eu já tivesse mudado muito antes de resolver publicar um livro. E quando já não cabia mais em mim, como costumam fazer os filhos mais sapecas, escapuliu como eu menos esperava e se materializou em tom de festa. Da escrita, me lembro pouco. Tampouco das histórias que ali inventei, ou que apenas contei. As minúsculas já não fazem tanto sentido e todas as Ninas, Eulálias e Emílias simplesmente fugiram ao que havia de mais puro à época das leituras ininterruptas de Zambra. A palavra envelheceu, e, embora estivesse em estado iminente de partida, não morreu. As ideias evoluíram e a vida, como havia de ser, apenas deu mais um passo rumo ao desconhecido. E é nesse lugar incômodo onde me encontro por agora, sensivelmente perdido à espera de quê. E é do tanto esperar que o corpo se move na ansiedade da busca, porque era preciso, evidentemente, provocar um reencontro qualquer. 

sábado, 24 de janeiro de 2015

sintonia do breu

regar as palavras, 
temperar a escrita.
dispor as cadeiras a prosearem entre si.
vermelho, amarelo.
reinam e dão vida à sala vazia na calada da noite.
silêncio, a maior parte do tempo era assim.
orquestra do meu corpo.
plantas assobiam,
gotas batucam no telhado.
é tempo de renascer:
a palavra ainda não morreu.

sábado, 20 de dezembro de 2014

fragmentos de um conto mais ou menos entregue

“...entrei no avião ainda em prantos e lembrando do exato momento em que Luísa piscou-me sem querer e fez nos encontrarmos, mesmo desatentos, e nos embriagamos em pequenos movimentos esquecidos no tempo, a sós, quase preparados para um pouco mais do inesperado encontro. eu ficaria longe por alguns meses, desta vez, e sabia que devia tentar esquecê-la, mas ela me permitia ser a melhor versão de mim mesmo e talvez fosse impossível, pois eu a amava tanto quanto ela amava tentar tocar o impossível com Magritte ou admirar-se com a primavera envolvente de Grant Wood.”

fumo tanto e, ainda assim, me falta um trago

tenho escrito pouco, em meus dias. tenho vivido pouco esses meus dias. alguns, bons. outros, nem tanto. benza deus, alguns me restam. e a eles me apego para seguir. quando tomo um café com broa, por vezes, os meus olhos brilham. o corpo treme, um calor suave domina os pulmões, projeto-me no imediato instante de ontem, que se transforma a cada dia em amanhã bem vivo. trabalho muito, conquisto um espaço que já não era meu. mas, quem era eu? ainda me busco entre os céus azuis de outrora, as palavras perdidas no tempo, a parede amarela, o quadro vermelho, os desejos interrompidos, o conto que não pôde lhe ser entregue, a vontade abrupta do toque. tenho escrito pouco, mas pensado muito. e às vezes dói o tanto que penso e brigo comigo e não consigo traduzir em palavras. te decifrar era preciso. e logo eu, que um dia me achei tão bom nisso, vejo-me outra vez entregue à loucura. estou preso em mim e fugindo do único direito que permitiram em vida. mas ainda é tempo de lhe salvar e, assim, me salvarei também.

eu quero não morrer

tem vezes que não escrevo o que penso
o que quero, tanto
o não dizer:
G-R-I-T-A!!!
tem vezes que prefiro morrer, mesmo aos poucos
dilacerado
é hora de me salvar de mim: o ano novo já vem