segunda-feira, 15 de outubro de 2012

o moço do guarda-chuva vermelho


o telefone tocou quando estávamos sentados um de frente ao outro na sala antiga de parede amarela e ele gentilmente apagou o cigarro e pediu-me licença para atender retirando-se ao cômodo vizinho. silencioso como quando nos conhecemos na biblioteca pública do bairro, o moço do guarda-chuva vermelho falava pouquíssimas palavras enquanto eu ao longe não conseguia visualizar os seus trejeitos e pude apenas ficar imaginando se talvez não fosse algum quase amor sugerido pelas lindas poesias do Neruda que eu lia enquanto o esperava com um café de punho na sua sala antiga de parede amarela. quando voltou, sentou-se envolvido por um quase silêncio à poltrona herdada de seu avô. “acho que estou apaixonado, sabe?, mas não sei se estou pronto ainda”. “pode falar...”, disse-lhe meio sem jeito e ainda um pouco tímido, mas surpreendido com a entonação de voz do moço do guarda-chuva vermelho e com o seu olhar palpitante que revelava-me um desejo incompleto em dividir algo que talvez estivesse guardado apenas consigo. “conhecia-a há alguns anos, Helena, nunca mais nos vimos. dia desses ela me mandou flores, foram essas margaridas que estão na prateleira, e desde então eu não paro de comprar margaridas. não a encontrei e não a tenho encontrado, recebi apenas algumas cartas e algumas dúzias dessas belas margaridas, mas sinto que já a amo de alguma maneira”. silenciou-me por completo, eu que sempre falava muito e que havia surrupiado a sua privacidade quando atendi o telefone na biblioteca pública, e o silêncio prevaleceu como prevalecia na maioria do tempo. ele sabia e eu inquieto em meio às suas margaridas entendia que a nossa conexão não estava nas palavras, mas em uma taciturna compreensão sobre o que era, afinal, a solidão. havia amor? na certa, duvidávamos. e não tocamos mais no assunto.

trepidante, absorvi-me em uma sensação de que talvez não fosse ao telefone um quase amor sugerido pelas lindas poesias do Neruda, mas um estranho amor autêntico que existia em Helena porque percebia a sua respiração fugaz mesmo parecendo-nos impossível novamente o amor e porque olhei à janela, também, e não tinha mais sol porque já era noite. garoava, mas era noite de lua cheia e isso talvez pudesse ser algum sinal e eu sempre apego-me a sinais como quando apeguei-me aos seus tiques na biblioteca pública percebendo-o incomodado com a minha presença perguntando sobre as horas. o silêncio absoluto tomou-nos novamente, ele me emprestou alguma roupa para que eu me sentisse mais confortável e indicou o sofá vermelho como um possível lugar para que eu pudesse me encostar. resolveu imergir-se no livro de contos que o aguardava desde quando havia se ido o último sol radiante e amarelo feito ovo e não trocamos mais nenhuma palavra. era noite de domingo e a primavera já se anunciava elegante, me lembro bem, e caímos no sono por ali mesmo. eu no sofá vermelho e ele na poltrona herdada de seu avô encostada na parede amarela da sala antiga. quando acordei, vi ao lado do telefone uma carta escrita à mão assinada por Helena e sorri, pois talvez ela realmente existisse. não tive coragem de ler ou tocá-la, sequer, e também não quis acordar o moço do guarda-chuva vermelho. vesti a minha roupa que havia ficado estirada no cômodo vizinho, apanhei o livro do Neruda para que pudesse devolvê-lo à biblioteca pública do bairro e decidi partir caminhando em silêncio como sugeria-me o encontro com o moço do guarda-chuva vermelho e em meio à garoa que ainda permanecia intermitente naquela estranha manhã de primavera. mas não sem antes regar, uma por uma, todas as suas belas margaridas que se mantinham intactas na prateleira da sala antiga de parede amarela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário