
Ainda
reside em mim certo sufocamento sobre algumas questões, um estranhamento com
certos lugares, com certas pessoas, com algumas decisões e indecisões, e existe
em mim também certa imprecisão diante de coisas malditas, mal ditas e azedas, uma
sensação de incompletude dessas que corroem os lábios e um quase suave e
iminente descolamento de certas coisas materiais que necessitam desapego. Mas
sinto-me diferente de antes, não é bom? Porque hoje eu posso dizer com alguma
propriedade que me assumo como estou, como eu sou, como andam os meus dias ou como talvez eu queira ou
possa, muito embora tenha me passado por outro em
boa parte dessa estrada porque eu precisava. Eu precisava, porque eu precisava
ser outro para que eu pudesse, enfim, ser esse eu novo. Ser eu de novo. Esse eu
de agora. Precisava muito desse retrocesso em mim, e então retroagi para que
estivesse mais preciso e mais atento por agora. E estou. Como estou. E como
sinto-me também enganado por mim mesmo, tem vezes. Mas pouco importa, porque
estou indiferente. Sentimento dúbio, como nunca ninguém tinha pensado nisso?
Indiferente. Diferente por dentro, indiferente carcaça. Desconexo e
contraditório. Ligeiramente louco.
E
acho até que posso, pois é como eu me apresento ou tento e finjo me apresentar
por agora. Porque no fundo eu nunca soube se havia algo de errado comigo, e
talvez não, e talvez nunca, e talvez eu possa sentir-me no meu direito
indiferente, mas o fato é que eu me queimei, certas vezes, e queimei também
certas etapas desse processo que preferi chamar por autoimersão. Processo bom,
pleno, e nisso aceitei-me quando reconheci a libertinagem que transcorria em
minhas veias, em mim, em todo o meu corpo, mas isso foi bem depois do começo se assim posso dizer, pois devo confessar
que em certos momentos eu optei por fugir-me à sarjeta e encontrar-me escondido
a tira colo com alguma bebida ou muitos tragos ao meu redor do que encarar o
inevitável e inescrupuloso embate com a minha própria alma. Declinei sobremaneira,
mas não havia como desistir dessa tarefa árdua e insuficiente de tentar
recolocar-me ante ao espelho e chamar a mim mesmo de filho da puta, ou de carne, ou de contradição, humano transeunte, vivo, vivo, vivo, porque é o
que eu era, normal, porque é o que eu sou, e vou ser sempre, e todos somos de certa
maneira também ou pelo menos um pouco.
E
nessa época, nesse passado não tão distante antes que isso tudo se revelasse
agora em forma de vômito encantado - sim, encantado -, a carne do jantar era preterida antes mesmo
que a mesa fosse posta a mim, antes da minha hora, antes que eu permitisse-me
adentrar no meu veneno mais doce, porque eu gostava muito pouco e sentia-me
desconfortável em degustar os sulcos naturais que se formavam em mim. Mas era
preciso, dedo na ferida, o fundo do útero, introspecção profunda. Tanto é que
hoje, indiferente, já me interessam muito mais os loucos de viver, por viver,
os que sabem viver e que não fingem-se santos, pois o são genuinamente também,
como Kerouac e Cortázar, ou como eu mesmo arriscando-me em hesitar porque não tenho mais
medo e nem aflição, ou como outros eus que sempre vou encontrar numa dessas esquinas
quaisquer de Bangladesh, ou de Paris, ou da Tailândia, ou aqui pertinho do
trabalho mesmo, quem sabe. Porque o fato é que ando prestando-me de uma
sobriedade deleitável em meus dias. E como é bom dizer que tudo isso é muito
bom.

Aceito-me,
então. E reluto menos em fazer novos ou refazer velhos amigos, em romper com
aquilo que me é comum, em buscar o irreconhecível em mim e nos outros, tenho
pensado também em sentar mais no chão, em observar as nuvens e tentar tocá-las, em talvez
declarar-me a um novo amor, quem sabe, a uma nova vida, e topar de maneira
extremamente instável encontrar cruzando o meu caminho outro louco que assim como eu
queimou certas etapas e escolheu dar a cara a tapa, imergir em poeiras sem
trégua e sem volta, viajar o mundo, escrever poesias, fugir, aprender a tocar
flauta ou arranjar uma música, escalar o mais alto topo e aprender a matar formigas em Roma, quem sabe, para
desapegar-se, energizar-se e depois sentir-se, sobretudo, pois depois de um
tempo não haverá mais tempo de voltar atrás, de voltar no tempo, de ser você
mesmo, esse eu que você tanto busca no passado. Pois não haverá mais ele. Pois
já não há. E não há mais nada, também, além desse teu eu novo, esse aí em
frente ao espelho fazendo a barba pela manhã ou recolhendo rosas no jardim
florido ou revelando-se pleno embaixo da água escaldante do chuveiro enquanto a
fumaça à tua volta gera uma estranha sensação, muito embora boa, de ver-te
desfazendo-se ou diluindo-se e transformando-se em mínimas películas novas e
distantes desse outrora, um quase nada, pois é necessário arriscar-se nessa doçura amarga e
bela da sociedade incansável e de um presente inoperante, mas infalível, e seguir. Porque a
felicidade encontra-se também no fato do reconhecer-se no aqui, e no agora, não amanhã,
nessas indetermináveis e impalpáveis e insustentáveis peripécias do quase
sempre.