quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O devorador de cérebros e o ciclo do suicídio

É como se ontem fosse muito ontem, antigo, é como se a cada novo texto que vem um outro morresse, tudo vem envelhecendo com muita celeridade e a vida, lá fora, passa. Os carros correm, os homens protestam, eu planto um jardim, alguns arrancam as flores, você se transforma, está nova, mais nova, as meninas paqueram, os meninos esperam, os outros escrevem, os pássaros voam, astronautas também, enquanto as manchetes somem e as minhas cartas, as suas, as nossas, a gente e as crônicas dessa nossa fase adulta, assim como os meus textos, meio que se vão. Envelhecem. É como se de uma hora para a outra, na estação daquilo que chamamos, talvez por engano, de vida, eu e os meus textos nos lançássemos no primeiro trem que viesse, parássemos em uma outra estação qualquer, retrógrada e adocicada com aspartame, e nos transformássemos em flagelos, imóveis e desfigurados, presos dentro de um antiquário chamado hoje.

O antigo é carregado. É pesado. O tempo pesa, as agulhas do presente me serram e as frestas do passado se cerram. É como se a cada nova inspiração que vem, abruptamente uma outra se esvai. Vai para o fundo a gaveta. Morre. E a morte custa caro. Sinto-me então como se eu estivesse pulando da janela mais alta de um edifício bem alto de uma cidade bem alta ou me enforcando, meio deprimido, não sei, é como se eu estivesse sendo vomitado de mim, por mim, tim-tim por tim-tim, e esquartejado durante a queda livre em plena distensão e, depois, encontrado em miúdos grãos de areia na beira do mar, ao relento como um solitário cavaleiro das flores, muito embora bravo e rebelde como as ondas gigantes que vão e vêm, furiosas, e destroem tudo à nossa volta.

O passado é desastroso, é velho, e eu também, e a cada nova escrita que vem, como os jovens protagonistas de uma pseudo vida adulta, é uma outra que se vai. Vamos. A entrega de uma alma por completo faz com que sejamos assim. Com que os meus textos se sintam assim. Nos entregamos, somos ensandecidos, depois morremos e ficamos nessa de tentar ressuscitar. É um processo desses do tipo que vai, não volta e você não é capaz de dar a mínima. Não é capaz de pegar. Nem você, nem eu e nem todos os nossos amigos, inimigos ou até mesmo os simpatizantes das nossas dissertações sobre o tudo, ou sobre o nada, em vão, todos aqueles que não saíram de férias neste ano que também se vai, que também morrerá em breve, neste ano que foi. É um ciclo vicioso. É como se as inspirações virtuosas de outrora não fizessem mais parte dos meus dias, é como se houvesse uma fuga em massa do meu repertório, fizeram rebelião essas bandidas e malvadas, e não que eu tivesse desleixo a ponto de jogá-las no lixo ou fosse disléxico a ponto de não encará-las, aceitá-las, mas é que hoje é difícil por demais revisitá-las, eu engasgo, foram todas engolidas pelo destino que se traduziu em hoje, ficaram pequenas e menores. Sumiram.

É como se o passado não pudesse mais vingar, vingar-se, ficou antigo, morto, eu fugi, o tempo é caro, raro, morreram-se os textos, os poemas, as ideias, mas virão outras e outros, como já estão vindo, eu sei, só que eu me sinto repentinamente integrante de uma decadente banda pop dos anos oitenta que ainda reluta em seguir. E eu preciso seguir, mesmo decadente e trupicante, preciso continuar nessa de me tentar, de ser o meu maior assassino, de insistir em querer pulverizar, massacrar e fuzilar os meus próprios textos, o meu outro, o meu antigo, simplesmente porque eu preciso de novos, do novo, eu preciso da inspiração de outrora, eu preciso devorar novos cérebros. Eu sou um devorador de cérebros, um caçador de almas, é por isso que eu escrevo. É como se a cada novo texto que vem eu conquistasse uma alma.

E como morre um texto a cada outro que vem, então uma alma também. Mas eu preciso delas, é meio controverso e então eu preciso matar, porque senão eu não cresço, não tenho almas, não tenho textos, então sai caro, muitos morrem, poucos se salvam, é meio que o avesso da minha própria cena, o meu contrário, o libertário, mas eu não conseguiria de outra maneira porque eu preciso disso para seguir. Me dá calor, é vida. E então eu mesmo provoco esse ciclo de suicídio em massa, que se alimenta em cadeia e porventura desabrocha em forma de flor, poesia ou simpatia, mas é um suicídio, tenho que lembrar, é como se fosse uma escada torta, trepidante e cruel para que eu consiga recrutar, aos poucos, uma alma por vez para alimentar por completo aquele que hoje eu chamo por o meu peito em chamas. É pura brasa, é fogo dos infernos, dos invernos, eu clamo, é um veneno só, sinto-me um serial killer da escrita e dos meus textos. E nessa colheita maldita, mal dita e azeda, como se fosse um presente de natal singelo, doce e suave do papai noel, aquele safado e mentiroso duma figa, eu agora quero a tua. A tua alma libertina.

Um comentário:

  1. porque hoje também me sinto morta, porque um pedaço de mim virou palavra, papel, documento, livro, supporte fisico.... porque um pedaço de mim se externalisou... num ato voluntario de sacrificio... Ou simplesmente pq gostei do seu texto, ou porque acho que gosto do seu texto por gostar da sua tentaviva, ou sei la porque (!) essa , hoje, é para voce: http://escolanomade.org/pensadores-textos-e-videos/lispector-clarisse/

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