terça-feira, 29 de novembro de 2011

A professora Anália

Outro dia eu voltei à Varginha, onde vivi até os dezessete, acho que há uns dois meses, fui ser padrinho de casamento do Terezo, um desses caras que eu também adotei tipo pra vida inteira, e acho que ele a mim, foi o meu melhor amigo por toda a infância e, junto com a Juju, ambos são meus primos, forma a minha dupla de irmãos. Fiquei feliz da vida e empolgado, comprei presentes, balas, cachaças e engovs, era a segunda vez que eu ia ser padrinho, acho que já estou ficando experiente nessa história, só assim mesmo. Saltitante, eu mandei passar o terno e engraxei o sapato, sabe como é, afinal o Terezo é o Terezo, e vice-versa, ele merecia. E já fazia algum tempo que eu não voltava à Varginha, sempre ia como um foguete, um beijinho e tchau, mas a possibilidade de rever os velhos amigos e a família me aguçou, aquela coisa toda, ia ter festa, u-hú, fiquei contando as horas.

O que eu não contava, na verdade, é que eu iria ter a boa surpresa de rever quase todos os professores do tempo da escola, do jardim ao terceiro ano. E chegando à igreja, pouco antes de cruzar a linha de chegada, acho igreja um saco, me deparei logo com a tia Hilda, que é a mãe do Terezo e tentava me ensinar química, mas eu não aprendia, isso é outra história, ela adorava fazer experimentos inusitados e mandar todo mundo para o chão: vai explodir! Eu ri sozinho, olhei para o lado e vi que alguns amigos sentiam o mesmo que eu, entrei para a fila indiana dos padrinhos, o meu casal era a Juju, e começamos aquele desfile um pouco aflitos, é verdade, demos mais alguns passos, me deparo logo com o professor Venturato, que situação, o Venturato dava aula de história e era uma espécie de delegado da escola, estava em todas as esquinas ao mesmo tempo, foi ele que me pegou pela primeira vez fumando escondido na sala do maternal e matando aula no campinho atrás da escola. Ele era foda, devia ir pro Bope, o Nascimento tá por fora. Dei mais alguns passos, e aí era o Fredão, eu adorava ele, me introduziu à matemática, à física e à peteca. É, peteca, já fui bom nisso... Ao lado dele estava a tia Sílvia, que era a general do time de basquete feminino, todas as meninas tinham medo dela, exceto as pupilas e, em fileira, outros tantos profs lado-a-lado. Não me lembro agora quem mais estava lá, mas era como se eu tivesse voltado uns quinze anos no tempo, me senti meio que um Marty McFly num corredor polonês, mas também senti muita nostalgia, o tempo passa, eles são mais ou menos como aqueles atores mirins que a gente acha que nunca vão ficar velhos, muito menos morrer, tipo o Macaulay Culkin, mas eles envelhecem, é meio deprê, é foda, acontece.

O casamento foi um sucesso, muita festa depois, o Terezo ficou feliz da vida, eu fiquei, todos ficamos, e um pouco bêbados também.

Mas o mais curioso é que, a partir desse reencontro, se posso assim chamar, eu comecei a lembrar-me também de outras feras que também participaram desse processo todo de tornar-me gente grande, e aqui só vou citar a Helenice - que eu amava tanto e se foi - que, junto com o Fredão e outros, me apresentaram o belo universo dos números, ao qual me embrenhei, foram meus tutores de matemática, e eu amava matemática, até me sagrei como o melhor aluno da escola, nesse quesito eu era tipo assim uma estrela. Pop-star. Mas o tempo passa, a gente muda, os gostos mudam, as vontades, tudo muda, tudo passa. E hoje eu poderia falar mais deles ou de muitos outros, mas paro as citações por aqui, meio que abruptamente, pois lembrei-me da professora Anália.

Anália não estava lá, não deve ter sido convidada, ela foi uma dessas que passou como um furacão na escola e eu tenho certeza que a maioria dos coleguinhas daquela época, incluindo o Terezo, pode não se lembrar dela. Acho que ela me deu aula durante um ano apenas. Mas eu lembro – e agora como se fosse ontem -, foi uma saudosa e gostosa passagem, muito embora rápida. Eu nunca fui de ler na adolescência, muito menos escrever, eu devia ter uns quatorze ou quinze, e Anália, que era professora de Literatura, me passou “Um copo de cólera”, do Raduan Nassar, para fazer um fichamento – ou uma resenha, ou um resumo, ou qualquer coisa parecida - e eu meio tedioso topei e, num movimento mega-contraditório, acabei adorando aquele livro, não tinha pontos finais, eu lia, lia, lia, e não conseguia parar, acho até que a minha escrita hoje tem muitos vestígios daquilo, tenho fortes traços linspectorianos, abreuninos e nassarentos, com vossa licença, mas foi ali que debutei e, no final das contas, a primeira a gente nunca esquece.

E a Anália não dava muita bola para mim, achava que eu era mais um daqueles rebeldes sem causa, mas quando entreguei o trabalho percebi um certo ar de surpresa. Fiquei ansioso e, dias depois, ela chegou com a nota e o único dez da turma tinha sido meu. Um susto. Como assim? O meu negócio é número, professora! Anália, com um ar de “tô nem aí”, mas com um sorrisinho bem maroto do tipo esperançoso e animado, lembro-me bem, me disse a seguinte frase: “menino, você é brilhante, eu não sabia, me surpreendi, você vai longe, pode ser um grande escritor”. Naquela época aquilo não fez o menor sentido, eu gostava mesmo era de me revezar entre o xadrez, a peteca e as bebedeiras, eu mesmo me achava um rebelde sem causa, comecei cedo, então eu é que não dei a menor bola para ela.

E mesmo sabendo que eu ainda esteja bem longe disso, tenho os pés no chão e poucas pretensões, acho bem maluco tudo isso, esse negócio de destino, então hoje o que eu queria mesmo era dizer para a Anália que eu lembrei-me disso tudo outro dia, dessa história confusa e que, de alguma forma, a carapuça me serviu. Anália me despertou para esse universo, fiquei estagnado, sei lá, por uns dez anos, mas voltei, lembrei-me dela, dessa passagem, e devo-lhe no mínimo um afeto. A professora Anália nem deve saber disso e, provavelmente, esse post nunca chegará até ela, mas mesmo assim eu quero agradecê-la, singelamente e com palavras, não poderia ser diferente. Eu queria revelá-la que, no final das contas, as palavras dela, simples e diretas, fizeram acender-me uma chama, mesmo que pequena, para que essas mesmas palavras, agora minhas, quem sabe um dia, possam levar-me onde eu quiser, a qualquer lugar, rumo ao incerto. E façam, quem sabe, com que essa fogueira que hoje é o meu peito, e que um dia foi acesa meio que sem querer, não se apague nunca mais. 

Um comentário:

  1. Chegou Leonardo, como lembrança do Face de 2011, em 2017. Emocionou, estou agora digitando este post com os olhos embaçados. Lembro sim, não só desse episódio como de outros, que fizeram valer os anos que lecionei nessa cidade de Varginha que amo de todo o meu coração. Não esperava que você tivesse guardado com tanto carinho o nosso rápido encontro. Torço por seu sucesso. Obrigada por tornar uma parte da minha trajetória significativa. Beijos meu querido aluno.

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